A SOAP recebeu, recentemente, uma dúvida da Luama.
A SOAP recebeu, recentemente, uma dúvida da Luama. A profissional de saúde apontou: “na minha área, [campo do conhecimento] em que tudo é baseado em evidências e estudos científicos, é mais difícil construir uma história nas apresentações e o risco de se tornar algo maçante acaba sendo maior.”
Luama, gostaria – gostaria mesmo! – de concordar contigo sobre a primeira parte da sua observação. No entanto, felizmente e infelizmente, a própria ciência já comprovou que até dados objetivos – números, por exemplo – estão sujeitos a juízo de valor. Em outras palavras, é impossível processarmos informações sem submetê-las à nossa subjetividade.
Feita essa ressalva, acredito também que criar histórias, baseadas em dados técnico-científicos, seja algo bastante desafiador, mas estão aí os clássicos da literatura e do cinema de ficção científica a nos provar – empiricamente (hehehe) – que é possível aproximarmos esses dois universos com sucesso.
Agora, antes de falarmos propriamente dessa possibilidade, me permita uma observação: tendemos a chamar de história aquilo que, na verdade, é uma argumentação construída a partir parâmetros lógicos – eventualmente com alguns elementos emocionais no conteúdo ou na forma. Argumentação e história podem estar juntas, mas não são, necessariamente, a mesma coisa.
Lembra quando você, ainda estudante, foi lá na frente da banca defender sua tese? Possivelmente ali você não contou uma história. Ou seja, possivelmente você não fez para seus pares um relato em primeira ou terceira pessoa de uma série de acontecimentos que se deram com algo ou alguém e que envolveu, em maior ou menor grau, o assunto do qual falava sua tese, certo?
Supondo que sim, o que você deve ter feito naquele momento foi uma argumentação lógica, na qual ordenou cada informação de modo que o resultado final sustentasse racionalmente sua conclusão.
Vamos imaginar, em uma versão bastante simplificada, uma pesquisadora defendendo diante de seus pares a eficácia de uma molécula como vacina contra o câncer de mama – já que é pra inventar que seja algo grandioso, né?
Diz ela: “Avaliamos por 40 anos cem voluntárias com histórico familiar de câncer de mama. Inicialmente, as separamos em dois grupos. O grupo 1 teve contato com a molécula “X” e o grupo 2, com o placebo. Ao final do período analisado, 90% dos membros do grupo 1 não tiveram câncer, enquanto que, no grupo 2, 60% desenvolveram a doença. Isso me leva a crer que a molécula “X” é eficaz na imunização contra o câncer.”
Veja, não há problema em seguir dessa maneira – até porque o meio acadêmico preza por certos padrões de exposição. Ocorre que não se trata de uma história, e sim de uma argumentação organizada a partir da lógica e ordem cronológica.
Argumentações lógicas, evidentemente, podem ser muito úteis para persuadir alguém sobre algo. Somadas então a um bom desempenho do orador, aumenta-se consideravelmente as chances de êxito.
Mas por que aplicar sempre esse ordenamento? Por que não explodir a ordem cronológica, recolher os pedaços e construir uma outra dispondo as informações de modo mais impactante?
Temos uma tendência a expor nosso raciocínio de modo cronológico: passado, presente e futuro; começo, meio e fim; antes, durante e depois etc.
Creio que há muitas oportunidades de abandonar essa opção e investir em ordenamentos menos convencionais. Creio também que essas combinações não usuais, embora não sejam a garantia de sucesso, têm um imenso potencial.
Imagine o exemplo da pesquisadora da seguinte maneira: “Descobrimos a vacina contra o câncer de mama! Ela está contida em uma molécula que chamamos de “X”. Foram precisos mais de 40 anos de pesquisa, mas chegamos à resposta. Nosso estudo foi conduzido assim…”
Note que trouxe para o início o final da argumentação anterior. Em seguida, optaria por descrever como se desenrolou a pesquisa e, como conclusão, poderia ainda retomar a fala inicial: “e foi assim que descobrimos a vacina contra o câncer de mama.”
Qual dos dois exemplos você acredita que seria mais interessante para uma eventual audiência? Eu ficaria com o segundo.
Fuja do maçante: elabore linhas argumentativas que alterem a ordem natural de exposição dos dados. Teste novas combinações, experimente, saia do convencional. Sua audiência provavelmente vai se mostrar mais interessada – e sabemos que uma audiência mais interessada tende a compreender melhor um raciocínio e a reter mais informações.
Claro, você sempre poderá partir para a elaboração de uma história que conjugue dados técnico-científicos, mas tenha claro que estamos falando de um desafio ainda maior – vai por mim, ganho a vida tentando – muitas vezes em vão – fazer isso.
Certa vez assisti a uma apresentação brilhante… Na verdade, assisti a uma apresentação brilhante que se passava em um seriado de TV. Coincidência: ela se passa na sua área, a da saúde.
Para ser mais específico, era uma apresentação brilhante não porque dentro de um seriado, mas porque contava uma história a partir de outras três.
Three Stories é o 21º episódio da primeira temporada de House, M.D. – certamente um dos melhores das oito temporadas, crédito da equipe de roteiristas de Dustin Paddock.
Nele, Gregory House – esse monumento à impossibilidade social de sermos drasticamente racionais, emotivos e francos – é obrigado a fazer uma palestra para estudantes de medicina. Ele, então, usa três histórias de pacientes para ensinar aos novatos técnicas de diagnóstico – e algumas coisinhas mais.
“Três caras entram em uma clínica com dor na perna. Qual o problema deles? (…) Em menos de duas horas, um desses três será expulso do hospital por fingir [os sintomas] para conseguir narcóticos e um deles corre risco de morte…”
House não menciona o que vai acontecer ao terceiro. Mas isso tem uma razão – que infelizmente não dá para tratar agora: já me estendi demais neste post.
Luama, faça assim: assista Three Stories e então falamos, em detalhes, sobre como usar histórias no universo da saúde, ok? Acredite, vai nos ajudar.
Ah, o episódio está disponível no Netflix.
Obrigado pela oportunidade de falar sobre tudo isso.